terça-feira, 1 de abril de 2014

Tetralogia Monstro, de Enki Bilal




Por Audaci Jr

Nike, Leyla e Amir são órfãos nascidos sob as bombas do cerco a Sarajevo durante a guerra no início da década de 1990 nos Bálcãs.
Mais de 30 anos depois, dotado de uma memória impecável, as lembranças de Nike o conduzem, em um mundo futurista cheio de outros conflitos e conspirações, a um reencontro entre os três.
A memória sabe de mim mais que eu”, já dizia o escritor uruguaio Eduardo Galeano. Os traumas de um conflito podem enraizar, criar galhos e dar frutos em vários âmbitos pessoais, incluindo a índole artística de alguém.
Filho de uma eslovaca com um bósnio, Enki Bilal previu, no final dos anos 1990, que a primeira década do Século 21 ficaria à sombra do terrorismo internacional. Sinistras alusões que fazem de Tetralogia Monstro uma obra bastante próxima da nossa realidade.
Mesmo sendo uma ficção científica, as HQs do autor de origem iugoslava radicado na França têm como marca registrada a crítica social e política, fazendo de suas páginas um reflexo “perverso” do mundo.
Os órfãos Nike, Leyla e Amir, nascidos nas entranhas da guerra de Sarajevo, em meio a gritos e contrações explosivas das bombas que assolavam a região, conduzem a narrativa sobre a memória e reencontros, dividida em quatro capítulos: O sono do Monstro (produzida em 1998),32 de Dezembro (2003), Encontro em Paris e Quatro? (essas duas juntadas em um só capítulo, a pedido do autor e produzidas nos anos de 2006 e 2007, respectivamente).
Nike Hatzfeld, o mais velho, paradoxalmente é um “especialista em memória que não se interessa pelo passado”. Achado ao lado de um combatente morto por um sniper que calçava a marca famosa de tênis esportivo, e encontrado por um jornalista francês de nome Hatzfeld, ele tem a notável habilidade de rememorar detalhadamente tudo que viveu e apresenta ao leitor os seus primeiros dias. 
Interssante notar como é tênue a linha que Bilal traça entre mundos. Além de colocar (e cutucar) a industrialização capitalista com uma marca de calçado, ele faz reverência a personagens reais. O sobrenome do protagonista pegou emprestado do correspondente de guerra do Libération (jornal que também é citado na Trilogia Nikopol, também lançada pela Nemo), Jean Hatzfeld, nascido em Madagascar e radicado na França, como o quadrinhista. Dentre seus livros, publicou L’air de la guerre (1994), sobre o conflito nos Bálcãs.
No hospital de Kosevo, sob o céu de Sarajevo que é vislumbrado devido a uma bomba que escancarou o teto do local, juntam-se a Nike, dias depois, Amir e Leyla, a caçula. Dezoito dias depois de seu nascimento, ele jura proteger os dois “irmãos”.
Não é só na narrativa textual que é percebido o tormento dos personagens. O clima pesado, lúgubre e deprimente é sentido nas detalhadas paisagens e nos cenários montados por meio das igualmente pesadas e sempre reconhecíveis pinceladas do autor.
Os ecos de outros conflitos mais antigos, como a Segunda Guerra Mundial, são mostrados na arquitetura da sua infância em Belgrado, por exemplo. Vale lembrar que foi em Sarajevo que se deu o assassinato de Francisco Ferdinando, estopim da Primeira Guerra Mundial.
Na trajetória de encontros e desencontros dos três personagens, Bilal coloca conspirações arquitetadas por uma máfia integralista, viagens espaciais, uma polícia ostensiva e de formação brutal, animais do tamanho da palma de uma mão e vilões como Warhole, que pode dividir com a humanidade o título de “monstro” da tetralogia.
A crítica sempre está presente nas entrelinhas do álbum, seja nos mafiosos que desejam acelerar a morte de tudo que se relaciona à memória, ciência e cultura, seja nas entidades religiosas que vão presenciar uma escavação secreta ou quando Nike é indagado, mais de uma vez, se ele é de origem sérvia, croata ou mulçumana.
Outra análise visceral de Enki Bilal em Tetralogia Monstro é a respeito da própria arte, que não deve ser separada do que acontece no mundo. A síntese pode ser vista na epígrafe que o autor coloca no segundo capítulo:
Um alemão pergunta a Picasso diante da Guernica.
- Foi você que fez isso?
- Não. Foram vocês.
Às vezes, Bilal mistura as críticas como o inventivo “convite nuclear light” que Warhole entrega a Nike e sua amante para uma intervenção artística interativa e sangrenta. Outra criação artística do vilão é uma nuvem negra, cuja chuva resulta nas lágrimas da decomposição de dois mil soldados e civis mortos no “campo da estupidez”.
Prende a atenção também o intrincado jogo com os personagens envoltos em acontecimentos misteriosos como o 32 de Dezembro, moscas manipuladoras e várias réplicas não reveladas.
Como visto em outros trabalhos do autor, novamente é utilizado o artifício de se aproveitar de fragmentos de jornais, revistas e mensagens para contextualizar a narrativa da história.
Novamente, a Nemo prova que é uma das melhores editoras do mercado nacional. Com uma qualidade que já é praxe, a versão nacional tem formato europeu (24 x 32 cm) em capa dura, ótima impressão em um papel couché de alta gramatura.
O que carecia nas outras obras de Bilal lançadas pela Nemo, a Trilogia Nikopol e Animal’Z, um texto introdutório para enfatizar a importância do quadrinhista e do seu trabalho, é atenuado com um breve posfácio do autor falando por que escolheu o sobrenome de Jean Hatzfeld para Nike e um texto do próprio jornalista sobre coincidências da ficção e realidade.
“Os repórteres afirmam que a realidade supera a ficção; os escritores defendem o contrário. As guerras mostram que ficção e realidade se ultrapassam alternadamente, mas caminham juntas”, finaliza Hatzfeld.
Complementam o volume esboços do artista e um glossário seletivo.
Assim como “a memória é uma vasta ferida”, como já dizia Chico Buarque de Hollanda, a guerra acorda o “monstro”, como chega a ser definido na história em quadrinhos.





Título: Tetralogia Monstro

Editora: Nemo – Edição especial
Autores: Enki Bilal (roteiro e arte) 
Número de páginas: 272 - Capa Dura

Formato: 24 x 32cm
Preço: R$ 84,00


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                            (Publicado originalmente no site Universo HQ no dia 07 de fevereiro de 2014)

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