segunda-feira, 25 de abril de 2022

“O Beco do Pesadelo” e “O Beco das Almas Perdidas”: o monstro dentro do homem



Por Renato Félix*


Guillermo del Toro construiu uma carreira como cineasta exibindo monstros na tela. De “O Labirinto do Fauno” a “A Forma da Água”, passando por seus dois “Hellboy” e por “Círculo de Fogo”. Em seu primeiro filme após ganhar o Oscar de melhor filme (justamente com “A Forma da Água”), o mexicano dispensa as criaturas fantásticas. Quer dizer, mais ou menos. Embora “O Beco do Pesadelo” só conte com figuras humanas, a ideia da monstruosidade está no filme em mais de uma maneira.

Baseado no romance de William Lindsay Gresham, Del Toro não esconde seu fascínio pela ambientação da feira itinerante que exibe curiosidades, truques e aberrações. É uma longa primeira parte, em que Stanton Carlisle (Bradley Cooper) chega sem destino à feira e consegue um emprego. Ajudando um casal que apresenta um número fajuto de vidente (Toni Collette e David Strathairn), acaba aprendendo os truques, códigos de comunicação e como ler gestos e expressões da plateia para apresentar um número ousado de “leitura de mentes”. Ele pode até convencer que é capaz de contato com pessoas mortas.

Mas isso ele só leva em frente na segunda metade do filme, em chiques salões de Nova York, onde ganha bastante dinheiro ao lado da moça que levou consigo da feira, Molly (Rooney Mara). A proposta de uma psiquiatra (Cate Blanchett) para que Stanton atenda em particular a um milionário (Richard Jenkins) leva a situação a novos níveis de perigo.

Na feira, um número é apresentado sem que as autoridades saibam: o “selvagem” (“geek”, no original), um homem que é mantido prisioneiro em condições para que seja desprovido de sua humanidade e seja capaz de matar uma galinha com os dentes, arrancando for a cabeça dela na frente da plateia. Ele não é um ator interpretando, não mais. 

Aparentemente é um show que realmente existia no século XIX. E, nisso, “O Beco do Pesadelo” chega a lembrar “Monstros” (1932), o polêmico filme de Tod Browning que era estrelado por atrações reais de feiras como estas.

Enfim, esse ambiente de fantasia e terror – mesmo que seja tudo um truque – interessa a Del Toro a ponto de dedicar a ele mais tempo do que seria necessário. Mas há também o monstro dentro do ser humano, a deformação que leva à ganância que passa por cima de qualquer moral.

O Beco do Pesadelo” também segue de perto os códigos do filme noir, tanto em seu aspecto sombrio quanto na trama recorrente do sujeito que se acha muito esperto, mas vai se dar mal nas mãos de uma mulher fatal. Nessa mimetização do estilo, Del Toro é excelente.

O que muita gente talvez não tenha ficado sabendo é que o livro já tinha sido adaptado uma vez, chegando aqui com o título “O Beco das Almas Perdidas”. O filme de 1947 chegou ao streaming na mesma época em que sua versão de 2021.

Em preto-e-branco, traz Tyrone Power como Stanton Carlisle, numa trama que é praticamente a mesma. Galã que havia sido o Zorro sete anos antes, Power estava a fim de mudar a imagem e se dedicou a fazer o filme acontecer. A natureza sombria do material, no entanto, levou a cortes das cenas do “selvagem” em ação e à imposição do estúdio de um epílogo que deixasse o final menos negativo (a versão de Del Toro manteve o final pretendido originalmente).

Ainda assim é muitas vezes fascinante. A cena em que Molly (Coleen Gray) é “eletrocutada” é puro fascínio circense, tanto que Del Toro a repete fielmente em sua versão. Zeena, papel que Del Toro deu a Toni Collette, aqui é da grande Joan Blondell, estrela dos musicais da Warner nos anos 1930. Zeena tem consciência de que o que faz é teatro, Stanton começa a achar que tem mesmo poderes – ao menos poderes para iludir todo mundo.


O Beco do Pesadelo” (“Nightmare Alley”, EUA, 2021)

Direção: Guillermo Del Toro. Elenco: Bradley Cooper, Cate Blanchett, Rooney Mara, Toni Collette, Willem Dafoe, Richard Jenkins, Ron Perlman, Mary Steenburgen, David Strathairn, Tim Blake Nelson.

Onde ver: Star Plus.


O Beco das Almas Perdidas” (“Nightmare Alley”, EUA, 1947)

Direção: Edmund Goulding. Elenco: Tyrone Power, Joan Blondell, Coleen Gray, Helen Walker.

Onde ver: DVD (isolado ou na coleção Filme Noir – Vol. 19) e Belas Artes a la Carte.


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