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quarta-feira, 17 de abril de 2024

A jornada do herói na HQ BEOWULF, por Vitória Lima

“A mais longa das jornadas começa sempre com o primeiro passo” (provérbio chinês)

Tive duas ricas e inesquecíveis experiências como professora de Literatura Inglesa: a primeira na UFPB, em \joão Pessoa, (entre os anos de 1970 e 1992) e a segunda na UEPB, em Campina Grande, (entre os anos de 2003 e 2013). Meus cursos eram iniciados, invariavelmente, com a apresentação aos alunos dos primórdios da literatura inglesa, da Idade Média, com o poema épico “Beowulf”, uma obra seminal dentro do panorama da literatura inglesa. Contudo, o interesse nesta obra está restrito aos estudiosos da história literária e cultural britânicas. Foi, portanto, com muita surpresa que encontrei um exemplar da obra, em uma feira de HQ, no Espaço Cultural, em João Pessoa. numa versão Graphic novel, em português, assinada por Santiago Garcia e David Rubin, traduzida por Alexandre Calliari, trazendo um primoroso e inspirado epílogo do espanhol de Madrid, Javier Olivares. Uma rica edição em cores, de tamanho 31 x 21 cm, capa dura, uma produção da Pancrom Indústria Gráfica, datada de novembro de 2018. É claro que por trás desse achado está o talento e a sensibilidade, diria até, o faro de antiquário do produtor cultural, empresário do ramo dos quadrinhos Manassés Filho, proprietário da Comic House, que hoje, infelizmente, está restrita ao meio on line, subsistindo em sua forma física, apenas quando participa de feiras de HQ.

Meu primeiro contato com o poema “Beowulf” deu-se nos idos da década de 1970, quando cursava mestrado na Universidade de Denver, Colorado, Estados Unidos. Foi um choque para mim, entrar em contato com aquela língua estranha, o Anglo Saxão, a língua em que o poema foi originalmente escrito. O poema conta a história do herói Beowulf, que luta para defender seu povo (os dinamarqueses) contra a fúria destruidora do monstro Grendel, que na obra é identificado como “o filho de Caim”.

A obra é um “prato cheio” para a aplicação das teorias de Joseph Campbell sobre a jornada do herói, que busca identificar o caminho perseguido pelo herói até atingir seu objetivo. No caso de Beowulf, acompanhamos o nascimento do herói, quando ele se oferece para defender os daneses, os súditos de Hrothgar, que festejam suas vitórias no salão festivo de Heorot. O herói se define como “Bewulf, filho de Ecgtheow, rei dos Wegmlunding, vassalo de Hygelac, rei dos Godos. Ele diz que liderou catorze nobres guerreiros através dos mares até aquela orla onde tinha chegado. A sua saga contra o monstro Grendel tem várias etapas e ele consegue derrotar o monstro em todas elas.

A leitura de “Beowulf” compensa e nos introduz no reino da coragem e da aventura, tão fértil e perseguido por escritores mais modernos, como Tokien e tantos outros depois dele, até os nossos dias.

Ainda dentro da tradição medieval inglesa temos Geoffrey Chaucer, com suas “Lendas da Cantuária’, com seu variado panorama de personagens menos heroicos, mais próximos do homem e da mulher comuns.



quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Os moídos de Samuel Gois, por Vitória Maria



 “O MUNDO É UM MOÍDO” DE SAMUEL DE  GOIS

por Vitória Lima

O intertexto original deste livro de Samuel de Gois, a música de Cartola, que está insinuado no próprio título do livro, “O mundo é um moído”. A intertextualidade não é nenhuma novidade no mundo literário e é amplamente empregado pelos mais diversos criadores. No texto original, o samba de Cartola,  temos “o mundo ´é um moinho”, o que nos conduz diretamente a outro texto, o clássico “Don Quixote”, de Cervantes. Este intertexto se revela e multiplica pelas páginas do livro, através das relações que se desmancham, que são retratadas. 

Diz Cartola:

“Ainda é cedo amor

Mal começaste a conhecer a vida

Já anuncias a hora de partida

Sem saber mesmo que rumo irás tomar.”

E ainda:

“Presta atenção, querida,

Embora saiba que estás decidida

Em cada esquina cai um pouco a sua vida

Em pouco tempo não serás mais o que és.”


Nos versos seguintes, o intertexto se revela, quando o sambista diz:


Ouça-me bem, amor, presta atenção,

o mundo é um moinho

quando notares estás à beira do abismo,

abismo que cavaste com teus pés.”


Nos versos acima, os intertextos que alimentam o livro de De Gois, o belo samba de Cartola e a obra imortal de Cervantes, se entrecruzam através da palavra moinho, que nos remete  fonética e inevitavelmente a moído, do texto de De Gois... No caso do texto de De Gois, o moído se refere mesmo à relação que se finda, que se esvai dolorosamente no decorrer do livro, produzindo o sofrido moído de que fala o autor. 

Foto: Thaïs Gualberto

Thaïs Gualberto através da sua Editora Guilhotina ficou encarregada da cuidadosa edição e diagramação do livro, que foi revisado por Audaci Junior, editor do Caderno de Cultura do jornal A União, que também publicou erudito artigo no dia 19 de agosto de 2023 sobre o assunto. Nesse artigo Audaci revela seu profundo conhecimento e intimidade com o mundo dos quadrinhos, buscando nomes e referências pertinentes ao mundo em questão, o que já está sugerido no próprio texto de Samuel, que passeia desde as cartas do tarot até os personagens da mitologia grega, como a Medusa e a Mona Lisa de Leonardo da Vinci. Todo isso revela o amplo espectro por onde se movimenta o quadrinista, além das referências intrínsecas contidas no texto, amplamente discutidas por Audaci Junior no seu texto publicado.

Capa Definitiva - O mundo é um moído

A caprichada edição teve o apoio da Catarse e está à venda na Miramar Livros ou sua loja virtual clicando aqui.

Boa leitura!

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

A luta feminina em Bordados de Marjane Satrapi, por Vitória Lima


Desde que me entendo por gente que leio quadrinhos. Primeiro foram as revistinhas infantis, como Pato Donald, Mickey, Pinduca, Bolinha, Luluzinha e tudo o mais que havia disponível para o público infantil, dentre vários outros que meu pai nos trazia de suas viagens e os que acompanhávamos através dos jornais como o Correio da Manhã, que meu pai assinava. Havia também as adaptações para HQ dos clássicos da literatura, que começavam a se popularizar.

Hoje, os quadrinhos são mais uma forma, um suporte de leitura, de divertimento e ilustração para adultos, jovens adultos e crianças, através de uma gama de livros e adaptações que foram surgindo. O mais recente que me caiu sob os olhos foi “Bordados” (Companhia das Letras, 2010), de Marjane Satrapi, autora iraniana que já conhecia através da obra “Persépolis”, tanto em HQ como em filme, mas esse “Bordados” foi uma surpresa que me encantou sobremaneira. Através dele nos familiarizamos melhor com a organização familiar que permeia a sociedade iraniana, que privilegia o homem e submete a mulher a uma rotina limitante, que a reduz a um ser quase infantilizado e irracional. Isso tudo está em “Bordados”, onde as mulheres só tem um objetivo na vida: casar com um homem rico (que acaba sendo, invariavelmente muito mais velho que elas) e, nessa busca cega, muitas vezes se deparam com pretendentes que dizem ser o que na realidade não são. Na condição de oprimidas, encontram mil maneiras de ludibriar o opressor, sejam eles pais, maridos ou outros que assumam esse papel em suas vidas. E os pais das moças, sempre apoiando (de perto ou de longe) as opções das filhas, contanto que elas sejam economicamente proveitosas. Marjane aproveita a oportunidade para denunciar as armadilhas que se escondem por trás das falsas aparências. Paralelamente, criam-se as rodas de amigas, onde a sororidade as compensa pela opressão paterna (e até materna!) prevalente. 

Como todos ao oprimidos, as mulheres se apoiam e se ajudam mutuamente e inventarem formas de se defender das diversas armadilhas machistas que as cercam e ludibriar seus opressores, uma delas sendo a técnica do “bordado” que consiste na reconstituição do hímen, com a qual driblam a exigência obrigatória da virgindade para as mulheres. 

O livro me levou diretamente de volta aos anos 1970, quando estudava nos Estados Unidos. Estudar em outro país, era uma forma que as jovens iranianas encontravam de fugir da vigilância familiar, e quem sabe, casar e viver uma vida mais livre, longe dos costumes arcaicos do país de origem. Isso, para nós latinas era um sonho e para as orientais, no caso, as iranianas, uma oportunidade de fugir dos casamentos arranjados pelos pais, à revelia da noiva.

Crédito foto: Joseph Szabo

Conheci e fiz amizade com uma jovem iraniana nessa situação. Ela, que já estava morando nos Estados Unidos há alguns anos, já concluíra a graduação e estava vislumbrando um mestrado na sua área (não me lembro mais qual era a sua área de estudo). O fato era que ela sempre descobria um novo curso, uma nova forma de postergar o retorno para o Irã e lá submeter-se a uma união com um homem mais velho, escolhido pelos pais, que já se impacientavam com suas postergações e pedidos de desculpa ao “noivo” que haviam escolhido para ela, dentro dos padrões tradicionais: muito mais velho e rico, muito rico. Então tomaram uma decisão e foram eles mesmos resgatar a filha, que adiava tanto a volta para casa. 

Quando a conhecemos, a jovem iraniana estava vivendo esse dilema: voltar para o Irã e casar com o velho rico que os seus pais haviam escolhido para ela, ou permanecer nos Estados Unidos, opção com a qual ela não podia arcar e seus pais lhe deram um xeque-mate: ou ela voltava com eles, ou não arcariam mais com os custos de sua permanência nos Estados Unidos. E foi o que ela fez: voltou para casa, desolada e triste, e nós, suas amigas, não tivemos mais notícias suas.