quarta-feira, 6 de abril de 2016

Uma metamorfose iraniana, de Mana Neyestani




Mana Neyestani se tornou vítima do sistema totalitário instaurado pelo regime do Irã em 2006, no dia em que desenhou uma conversa entre um personagem e uma barata no suplemento infantil de um jornal iraniano. Nesse papo, o inseto utilizou uma palavra azeri.


Os azeris, povo de origem turca do norte do Irã há muito oprimido pelo regime central, se sentiram provocados com o desenho, que para muitos foi o estopim para desencadear um levante.


O regime de Teerã precisa de um bode expiatório: Mana Neyestani. Ele e o editor da revista são detidos e mandados para a prisão 209, uma seção não oficial da penitenciária de Evin, sob a administração da Vevak, o ministério das Informações e da segurança nacional.



Para concluir uma das suas mais conhecidas obras, A Metamorfose, Franz Kafka (1883-1924) teve menos de um mês. Paralelo à história do caixeiro viajante que um dia acorda transformado num inseto, o iraniano Mana Neyestani teve bem mais tempo para vivenciar seu recorte biográfico apresentado neste álbum: três meses preso.


Se Franz Kafka discorre sobre o estado emocional do homem, analisando o comportamento do protagonista e sua família, Uma metamorfose iraniana também coloca a vida do autor nesse prisma, adicionando a crítica do autoritarismo burocrático tão presente nas ideias de Kafka.


O problema maior é que Mana estava bem longe de uma crítica sócio-política como todo bom quadrinhista de jornais reformistas, que tiveram ascensão principalmente no final dos anos 1990. Particularmente numa noite de poucas ideias, a figura inocente de uma barata ganhou forma na sua tinta, junto com um termo azeri que até ele mesmo usava no dia a dia.


O que parecia um trabalho nada arriscado para um público jovem perante as críticas políticas por meio das ilustrações e charges, tornou-se um verdadeiro pesadelo para Neyestani.


Após as Guerras Russo-Persas, esse grupo étnico de origem turca da Ásia Central foi dividido em dois territórios, cuja maior parte se encontra dentro do Irã, mais especificamente na região ao norte, chamada de Azerbaijão Iraniano
.

Os azeris são um povo cuja religião majoritária é o islamismo xiita, a mesma do Irã. Seu idioma também é muito próximo dos turcomanos.


Diante de tanta complexidade e no caldeirão de conflitos religiosos e políticos que é o Oriente Médio, o “mal-entendido” gráfico foi usado como uma alfinetada panfletária que causou discórdia e tumulto no Azerbaijão; e “o pato” – ou seria o inseto? – foi pago pelo ilustrador e seu editor.


Como uma sobrevivente à altura de inseticidas e hecatombes nucleares, a barata vai acompanhá-los durante todo o longo episódio, como um lembrete incômodo do autoritarismo kafkiano do regime vigente.


Em capítulos curtos, Mana Neyestani usa várias chineladas criativas, deixando a narrativa angustiante, mas, ao mesmo tempo, paradoxalmente mostra seu tom irônico e bem-humorado.


Os exemplos podem ser vistos nas temerosas reflexões que o autor faz de seu destino com o passar do tempo, como também no uso bastante oportuno de várias referências metalinguísticas.


Na obra, Neyestani coloca um nariz de Pinóquio no diretor do jornal que promete apoio, dá corda no advogado que canta de cor artigos do código penal, imagina a cela como uma ilha isolada ou simplesmente ganha asas e quebra a moldura da diagramação (sendo repreendido pelo chefe da segurança pela metáfora).


Na época, até um jogo de futebol entre o Irã e México, na Copa do Mundo de 2006, vira motivo de esperanças de acalmar as tensões no Azerbaijão.


Com um traço cheio de hachuras, que lembra o melhor do underground de Robert Crumb, o quadrinhista vai construindo não só as suas memórias, mas também as suas impressões além dos registros fieis, como a ida de olhos vendados à sala de interrogatório.


A tensão cresce quando ele e o editor são transferidos para o prédio principal, convivendo com outros detentos com identidade e delitos falsos. Novas situações e personagens são apresentados, impulsionando a trama para o paciente plano de fuga junto com a esposa, quando Neyestani é colocado em liberdade provisória.


Perseguições políticas, arbitrariedades praticadas em nome da lei e a questão sempre polêmica acerca da liberdade de expressão automaticamente remetem a episódios como o ocorrido em janeiro deste ano, no ataque contra a redação da revista Charlie Hebdo, na França (país onde Mana Neyestani atualmente reside), que deixou 12 mortes e vários feridos.


A publicação da Nemo segue o padrão editorial de outros títulos da editora, como O mundo de Aisha e O muro: volume em brochura com formato 17 x 24 cm, capa cartonada com orelhas, papel offset de boa gramatura e impressão.


Há algumas poucas “escorregadas”, como todas as numerações dos capítulos serem por extenso, menos o primeiro (indicado por algarismo arábico, “1”), a omissão das palavras “de uma” no recordatório da página dupla (20-21) – “…por causa de uma simples palavra…” –, e o hífen em “procurador-geral” no primeiro quadro da página 26.

Enfim, nada que diminua Uma metamorfose iraniana, que é uma das melhores HQs deste primeiro semestre, garantindo a Nemo como uma das principais editoras do Brasil no equilíbrio qualitativo e quantitativo de materiais que raramente seriam vistos por aqui

Título: Uma metamorfose iraniana
Autor: Mana Neyestani
Páginas: 208Formato: 17 x 24cm •
Acabamento: capa catonada
R$  39,90
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(Resenha publicada originalmente no site Universo HQ )

terça-feira, 5 de abril de 2016

Jockey, de Rafael Calça e André Aguiar



Por Audaci Jr
Durante a Era de Ouro das corridas de cavalo, os porões do Jockey Clube continham muitos mistérios. Golpes, subornos, intrigas, morte, sorte e azar.

O segredo dos delírios de um homem está por trás daqueles portões, como também a chance de redenção de um jovem negro que sempre se considerou um azarão, a provação do amor de um casal que nunca pôde decidir o seu destino e alguém extremamente perigoso por sua obsessão pela sorte.

O acaso está lançado quando a vingança vem a galope. O cenário é o Jockey Clube de uma metrópole dos anos 1940 que remete à capital paulista, oferecendo todo o clima pulp extraído em profusões da veia do noir, tendo como base as corridas de cavalo.

O que mais chama a atenção em Jockey é a forma como Rafael Calça e André Aguiar estruturam a história, com uma economia de balões e recordatórios que abre espaço para um intricado jogo envolvendo propina, máfia e um inusitado toque fantástico em meio aos diálogos bem escritos e cheios de personalidade.

Em muitas sequências, o álbum enquadra na sua funcional e equilibrada diagramação uma narrativa altamente cinematográfica, a exemplo de uma perseguição automobilística, a fuga ligada ao sobrenatural e o embate físico de antagonistas galopando dentro do hipódromo.

Na obra, homens da lei corruptos, um jornalista sem ética prestes a perder a cabeça, um libidinoso político com duas-caras, o honesto jóquei negro que sofre preconceito, o detetive azarado que vira herói, um louco homicida que bate papo com o espírito de um cavalo, amores proibidos e uma seita de gângsteres com direito a cabeça decepada de cavalo, uma referência (de certa forma) ao clássico O Poderoso Chefão (1972), filme de Francis Ford Coppola baseado no romance de Mario Puzo (1920-1999).

Nesse desfile de personagens, os autores vão cravejando várias dúvidas e mistérios nas histórias paralelas que serão amarradas à medida que a HQ se aproxima do fim.

Antes de as tramas se cruzarem, uma série de eventos cai sobre os personagens, sejam as ações orquestradas pelo mero acaso do destino, ou movidas pelo planejamento violento da vingança guardada há um tempo equivalente ao azar de um espelho quebrado ou ainda por uma conspiração arquitetada pelo estranho e ganancioso culto.

É citada por essa seita a divindade bélica da mitologia lusitana chamada Cariocecus, o equivalente a Marte e Ares para as crenças romana e grega, respectivamente. A doutrina chegava a sacrificar prisioneiros de guerra e cavalos.

Ainda no plano místico, algumas vezes é tocado no conceito da Roda da Fortuna, carta do tarô que é uma das mais expressivas da sorte, mudanças e oportunidades, o movimento perpétuo da vida e do destino. Ela representará a boa ou a má sorte, dependendo de decisões e atitudes, motes também da HQ.

Por ser climatizado com as penumbras do noir, Jockey possui um humor negro em uma ou outra situação. Já a figura da femme fatale se resume praticamente às curvas desnudas no traço de André Aguiar em poucos momentos. Inusitadamente, a personagem feminina que tem mais importância na trama não carrega essa característica, apesar da sua última aparição.

A arte cheia de hachuras casa bem com a narrativa de cores sombrias e pesadas. Os desenhos de Aguiar fazem lembrar a escola europeia, principalmente aos nomes franceses como Christophe Blain, autor de Isaac, o pirata (cujo primeiro volume foi lançado no Brasil em 2005 pela Conrad).

Com cenas abertas, há passagens que impressionam pelo requinte técnico. Dentre os destaques, o quadrinhista “esculpe” as feições de um dos protagonistas nas sombras usando apenas o efeito das hachuras.

Ambos paulistanos, André Aguiar é autor da independente Velhaco’s (2014), HQ que envolve skate punk num futuro distópico; e Rafael Calça participou de coletâneas como o Front # 17 (Via Lettera, 2006), além de ter lançado seu primeiro trabalho solo, Dueto (2013), uma love story entre um lobisomem e uma cantora paraplégica.

O projeto foi contemplado pelo Programa de Ação Cultural da Secretaria de Cultura de São Paulo – ProAC para criação de quadrinhos. A edição da Veneta tem formato 21 x 28 cm, capa dura e uma impressão irregular no papel offset.

Jockey faz a sua “dança da sorte” bem antes do joguete com seus personagens, já na epígrafe que faz uma homenagem ao famosíssimo tango Por una cabeza, música de Carlos Gardel (1890-1935) com letra de Alfredo Le Pera (1900-1935). Uma das últimas parcerias dos artistas latino-americanos, mortos no mesmo desastre de avião.

Do que trata o popular tango? O vício da corrida de cavalos e a atração por mulheres. Seja como for, a Roda da Fortuna gira…


Título: Jockey
Autor: Rafael Calça e André Aguiar
Páginas: 136 • Formato: 21 x 28cm •
Acabamento: capa dura •
R$  49,90
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(Resenha publicada originalmente no site Universo HQ )

segunda-feira, 4 de abril de 2016

O trem dos órfãos 1 – Jim / 2 – Harvey, de Philippe Charlot, Xavier Fourquemin e Scarlett Smulkowski



Em Nova York, Estados Unidos, devido ao alto número de crianças abandonadas – a maioria originada da imigração – foi criado, em 1854, o programa Orphan Train Riders, considerado até hoje como a maior migração de menores na história da humanidade.

Em sua maioria órfãs, as crianças eram transportadas ao Centro-Oeste estadunidense em desenvolvimento para serem adotados por fazendeiros e utilizadas como mão de obra barata.

Em 1920, dentre essas crianças, estão Jim e Harvey, que, após 70 anos, voltam a se encontrar e a desenterrar memórias que encontravam encarrilhadas naquela viagem de trem.

Depois de revisitar o bom e velho jazz de Nova Orleans em dois volumes de Bourbon Street (Os fantasmas de Cornelius e Turnê de despedida, ambos lançados no Brasil pela 8Inverso), o roteirista francês Philippe Charlot toca num assunto totalmente desconhecido da História norte-americana, que ajudou a formar toda uma nação, para o bem ou para o mal dos seus protagonistas.

Atualmente com cinco tomos na França, esta edição nacional fecha o primeiro ciclo com os dois primeiros volumes (Jim e Harvey), colocados de modo ininterrupto devido a questões contratuais da BesouroBox com a Bamboo Édition.

No início do Século 19, houve uma intensa imigração para os Estados Unidos, principalmente por causa da crise econômica na Europa, em virtude da industrialização e concentração fundiária.

Com o constante crescimento demográfico no Leste, era cada vez mais desejada (e ambiciosa) a conquista das terras do chamado Oeste Selvagem. Desde a construção da malha ferroviária, a descoberta de ouro, a Doutrina Monroe de “a América para os norte-americanos”, os conflitos como a Guerra do México (1845-1848) e a dizimação indígena, a expansão deixou de ser sonho para virar realidade.

Uma realidade dura, diga-se de passagem, tanto para o desbravador quanto para os nativos. Uma oportunidade de amenizar essa concentração populacional de órfãos e meninos de ruas foi o Orphan Train Riders, programa criado pelo reverendo Charles Loring Brace para solucionar esse imenso problema social em Nova York.

Na teoria, a intenção era boa: tirar os pequenos de uma vida miserável, de criminalidade e sem perspectivas, para dar educação, morada e zelo familiar até os 17 anos de idade. Mas não era bem essa cartilha ditada pelo projeto no decorrer dos anos, junto à postura negligente dos agentes do programa.

Como em todos os cantos, o ambiente corruptor não era apenas nas ruas. No desenrolar da trama (baseada em depoimentos de quem viveu essa situação ou de sua prole), O trem dos órfãos mostra todos os buracos no sistema que resultaram numa vida indigna para essas crianças, que eram obrigadas a deixar tudo – identidade, memórias e até mesmo os verdadeiros pais – para ter uma “segunda” oportunidade, resumida ao trabalho infantil.

Por mostrar mais a viagem de Jim e seus dois irmãos menores, o roteirista se concentra nos detalhes da viagem e da adoção em si. A princípio, pouco se vê do destino dos personagens, mas pode-se ter uma noção pelas atitudes das pessoas que querem “adotar” as crianças em cada lugar que o trem para.
Muitos olhavam os dentes como se fosse gado, outros se queixavam de não ter mais meninas na seleção. Tudo isso implica no futuro que elas teriam naquele ambiente.

Até o final do programa, no ano da Grande Depressão, em 1929, estima-se que mais de 250 mil crianças foram enviadas ao Centro-Oeste norte-americano, estipulando atualmente mais de dois milhões de descendentes diretos dessas pessoas que tiveram suas raízes arrancadas das suas vidas.

Philippe Charlot faz um instigante jogo de idas e voltas entre 1920 e 1990, que mantém a atenção do leitor. No final, as dúvidas são sanadas e as consequências são bem atadas pelo roteirista, principalmente num bem engendrado ato de vingança.

Apesar do lado sério, há também espaço para o cômico, mesmo sendo trágico, vide as ações desesperadas de Jim para manter os irmãos juntos ou as peraltices de Harvey que remetem a Tom Sawyer e Huckleberry Finn, clássicos personagens de Mark Twain (1835-1910).

A bonita arte de Xavier Fourquemin tem sua origem na tradicional escola da linha clara franco-belga, com personagens cartunescos interagindo em cenários realísticos e detalhados. Outro destaque são as paletas de cores sóbrias e precisas escolhidas por Scarlett Smulkowski.

A edição do selo 8Graphics da BesouroBox tem capa cartonada, papel couché de boa gramatura, excelente impressão e uma série de extras que mostram fotografias, mapas e mais informações sobre a história real do programa.

De negativo, a impressão da capa está sem tanta nitidez quanto o miolo (e isso não é relacionado ao aspecto “fantasmagórico” que evoca a memória do personagem presente nela), o primeiro texto do material extra está muito perto da margem e o formato (16 x 24 cm) não casa com a diagramação, dando mais espaço acima e abaixo nas páginas (o original era menos “alongado”, 25 x 32 cm).

Houve também alguma desatenção na revisão, como a falta do acento circunflexo na sentença “O quê?”, na página 17, e a redundância no “…há 70 anos atrás!!!”, na 69.

Independentemente disso, a edição nacional não descarrila em algo mais grave e integra uma soma muito bem-vinda do material europeu geralmente ignorado no Brasil, assim como essa passagem da História da formação dos Estados Unidos.

Apesar de fechar um ciclo, fica a curiosidade de saber mais sobre o destino dos personagens e o desenrolar da narrativa de Philippe Charlot e Xavier Fourquemin.

Em tempo: para quem quiser saber mais sobre o tema, existe um livro de mesmo nome que saiu por aqui pela Editora Planeta, escrito por Christina Baker Kline e que já vendeu mais de um milhão de exemplares. É um romance com base em pesquisas e entrevistas da autora feitas com homens e mulheres que foram passageiros do obscuro trem.

Título: O trem dos órfãos
Autor: Philippe Charlot, Xavier Fourquemin e Scarlett Smulkowski
Páginas: 104 • Formato: 16 x 24cm •
Acabamento: capa cartonada •
R$  42,00
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(Resenha publicada originalmente no site Universo HQ )

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Ardalén, de Migulenaxo Prado



Por Audaci Jr

Somos o que nós nos lembramos, mas a memória não é um registro objetivo e inalterável.

Sabela tenta reconstruir uma parte de sua história familiar. Ela busca informações sobre o paradeiro do avô, Francisco Lamas, que emigrou jovem para Cuba, nos anos 1930, e nunca mais deu notícias.
Chegando a um vilarejo na Galícia, ela conhece o velho Fidel, um marinheiro aposentado que pode ter sido companheiro de seu avô numa de suas viagens marítimas.

Contudo, esse senhor de idade avançada tem muitos problemas para recordar. Há mais fios que se entrelaçam neste processo de resgate através das memórias de Fidel: outras pessoas, outras lembranças…

Antes de mergulhar na análise propriamente dita na obra de maior fôlego de um dos grandes nomes dos quadrinhos mundiais, Miguelanxo Prado, um parêntese deve ser colocado aqui: como um oásis, Ardalén preenche a “seca” que o Brasil tinha com relação às obras do autor espanhol.

Além de esparsas histórias curtas em revistas mix como Heavy Metal Brasil e Aventura & Ficção (Abril), a arte de Prado pode ser conferida no especial Sandman – Noites sem fim (lançado em 2003 pela Conrad e republicado em 2014 pela Panini) e na série Cidades ilustradas (Casa 21), na qual retratou Belo Horizonte, em 2003. A única coletânea autoral lançada no país foi Mundo cão, em 1991, pela Abril, no # 26 do selo Graphic Novel.

Com esses isolados exemplos, fica difícil ter a ciência dos horizontes criativos – tanto no traço quanto nas histórias – desse essencial quadrinhista. É possível fazer até um paralelo dessa falha gravíssima do cenário editorial brasileiro para preservar a memória da obra de Miguelanxo Prado e as confusas lacunas reminiscentes da cabeça de Fidel, personagem central de Ardalén. Os pequenos pedaços lançados por aqui não oferecem a dimensão oceânica das HQs do autor.

Falando em nacos, é justamente pelos fragmentos de memória que a construção da figura ausente do avô de Sabela se constrói. O que nós somos? O que vai ficar de nós na passagem terrena? Como as memórias sobrevivem nas nossas mentes e são passadas de maneira geracional? Essas e muitas outras questões podem ser levantadas no decorrer da leitura.

Existem vários “tipos” de memórias, que vão desde a coletiva até a metafísica, mas nada é mais cara a cada indivíduo do que a pessoal, principalmente quando as terminações nervosas são enraizadas no solo genético, afetivo, familiar.

Sabela se encontra numa encruzilhada com sua vida em naufrágio a pique. Madura, com cerca de 40 anos, ela está passando por várias dificuldades que acarretam a sua crise existencial: ao mesmo tempo em que procura por emprego, passa pelo burocrático processo de separação conjugal.

Prado preenche a complexidade de ambos os protagonistas também com outros elementos de igual importância narrativa, a exemplo de uma série de objetos dispostos na cabana de Fidel que (a certo ponto) autenticam seus relatos ou de habilidades esquecidas, como os entalhes de formas marítimas no pedaço de madeira.

Sem as fronteiras da realidade e fantasia, veracidade e delírio, o autor cria seu próprio universo, que sempre deixa o leitor com “o pé atrás”. Prado também reforça e “remonta” essas lembranças com versos, documentos, fotografias, trechos de enciclopédias, artigos de revistas e afins entrecortando os capítulos da obra.

Não esquecendo também dos pontos paralelos à trama principal, auxiliados pelos coadjuvantes, os habitantes da vila e os preconceitos provincianos dos mais velhos, revelando que a maldade, a ganância e a hipocrisia podem residir em qualquer lugar.

Essas características do presente não são gratuitas e partem de uma sutil análise sociológica entremeada nas buscas (e respostas) dos personagens no passado. Na época do avô de Sabela e de Fidel, a pobreza tinha índices elevados, principalmente na região da Galícia, obrigando a imigração para países da América Latina e Caribe.

Ardalén é uma história de amores, ódios, frustrações, rivalidades, esperanças, encontros e desencontros, na amplitude desses significados. O teor onírico, poético e fantasioso é correspondido na belíssima arte, com técnicas mistas de pintura. A expressividade e naturalidade lúgubre dos personagens são tão importantes quanto os detalhes cênicos.

O nome do álbum corresponde ao batismo do vento que sopra do mar para a terra nas costas atlânticas europeias. Não tem um resumo melhor da história, conduzida ao bel-prazer da memória e da busca de identidade, mesmo que seja norteada por uma rosa dos ventos guardada numa velha caixa de lata para fortalecer as lembranças.

Um dos melhores lançamentos do ano, a edição só não ganha nota máxima em virtude de algumas escorregadas da Realejo em termos de editoração e revisão. Com formato 19 x 26 cm, capa cartonada com orelhas e papel couché, o que pode afugentar leitores é o preço alto, mesmo que valha a pena.

Em 2013, o álbum foi eleito a melhor obra espanhola no Salão Internacional de Quadrinhos de Barcelona, na Espanha, e arrebatou o Prêmio Ecumênico no Festival de Angoulême, na França. Frutos de um trabalho que levou três anos para ser produzido.

Assim como outra obra-prima de Prado que toca o tema marítimo (e precisa ser lançada no Brasil) – Traço de giz –, Árdalen vai ficar por um bom tempo na memória, até que se embarque para velejar por uma nova leitura, após os fragmentos da primeira sejam oxidados pela maresia do tempo.

Como já disse o poeta baiano Waly Salomão (1943-2003), “A memória é uma ilha de edição”.

Título: Ardálen
Autor: Miguelanxo Prado
Páginas: 256 • Formato: 19 x 26cm •
Acabamento: capa cartonada •
R$  120,00
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(Resenha publicada originalmente no site Universo HQ )