segunda-feira, 4 de abril de 2016

O trem dos órfãos 1 – Jim / 2 – Harvey, de Philippe Charlot, Xavier Fourquemin e Scarlett Smulkowski



Em Nova York, Estados Unidos, devido ao alto número de crianças abandonadas – a maioria originada da imigração – foi criado, em 1854, o programa Orphan Train Riders, considerado até hoje como a maior migração de menores na história da humanidade.

Em sua maioria órfãs, as crianças eram transportadas ao Centro-Oeste estadunidense em desenvolvimento para serem adotados por fazendeiros e utilizadas como mão de obra barata.

Em 1920, dentre essas crianças, estão Jim e Harvey, que, após 70 anos, voltam a se encontrar e a desenterrar memórias que encontravam encarrilhadas naquela viagem de trem.

Depois de revisitar o bom e velho jazz de Nova Orleans em dois volumes de Bourbon Street (Os fantasmas de Cornelius e Turnê de despedida, ambos lançados no Brasil pela 8Inverso), o roteirista francês Philippe Charlot toca num assunto totalmente desconhecido da História norte-americana, que ajudou a formar toda uma nação, para o bem ou para o mal dos seus protagonistas.

Atualmente com cinco tomos na França, esta edição nacional fecha o primeiro ciclo com os dois primeiros volumes (Jim e Harvey), colocados de modo ininterrupto devido a questões contratuais da BesouroBox com a Bamboo Édition.

No início do Século 19, houve uma intensa imigração para os Estados Unidos, principalmente por causa da crise econômica na Europa, em virtude da industrialização e concentração fundiária.

Com o constante crescimento demográfico no Leste, era cada vez mais desejada (e ambiciosa) a conquista das terras do chamado Oeste Selvagem. Desde a construção da malha ferroviária, a descoberta de ouro, a Doutrina Monroe de “a América para os norte-americanos”, os conflitos como a Guerra do México (1845-1848) e a dizimação indígena, a expansão deixou de ser sonho para virar realidade.

Uma realidade dura, diga-se de passagem, tanto para o desbravador quanto para os nativos. Uma oportunidade de amenizar essa concentração populacional de órfãos e meninos de ruas foi o Orphan Train Riders, programa criado pelo reverendo Charles Loring Brace para solucionar esse imenso problema social em Nova York.

Na teoria, a intenção era boa: tirar os pequenos de uma vida miserável, de criminalidade e sem perspectivas, para dar educação, morada e zelo familiar até os 17 anos de idade. Mas não era bem essa cartilha ditada pelo projeto no decorrer dos anos, junto à postura negligente dos agentes do programa.

Como em todos os cantos, o ambiente corruptor não era apenas nas ruas. No desenrolar da trama (baseada em depoimentos de quem viveu essa situação ou de sua prole), O trem dos órfãos mostra todos os buracos no sistema que resultaram numa vida indigna para essas crianças, que eram obrigadas a deixar tudo – identidade, memórias e até mesmo os verdadeiros pais – para ter uma “segunda” oportunidade, resumida ao trabalho infantil.

Por mostrar mais a viagem de Jim e seus dois irmãos menores, o roteirista se concentra nos detalhes da viagem e da adoção em si. A princípio, pouco se vê do destino dos personagens, mas pode-se ter uma noção pelas atitudes das pessoas que querem “adotar” as crianças em cada lugar que o trem para.
Muitos olhavam os dentes como se fosse gado, outros se queixavam de não ter mais meninas na seleção. Tudo isso implica no futuro que elas teriam naquele ambiente.

Até o final do programa, no ano da Grande Depressão, em 1929, estima-se que mais de 250 mil crianças foram enviadas ao Centro-Oeste norte-americano, estipulando atualmente mais de dois milhões de descendentes diretos dessas pessoas que tiveram suas raízes arrancadas das suas vidas.

Philippe Charlot faz um instigante jogo de idas e voltas entre 1920 e 1990, que mantém a atenção do leitor. No final, as dúvidas são sanadas e as consequências são bem atadas pelo roteirista, principalmente num bem engendrado ato de vingança.

Apesar do lado sério, há também espaço para o cômico, mesmo sendo trágico, vide as ações desesperadas de Jim para manter os irmãos juntos ou as peraltices de Harvey que remetem a Tom Sawyer e Huckleberry Finn, clássicos personagens de Mark Twain (1835-1910).

A bonita arte de Xavier Fourquemin tem sua origem na tradicional escola da linha clara franco-belga, com personagens cartunescos interagindo em cenários realísticos e detalhados. Outro destaque são as paletas de cores sóbrias e precisas escolhidas por Scarlett Smulkowski.

A edição do selo 8Graphics da BesouroBox tem capa cartonada, papel couché de boa gramatura, excelente impressão e uma série de extras que mostram fotografias, mapas e mais informações sobre a história real do programa.

De negativo, a impressão da capa está sem tanta nitidez quanto o miolo (e isso não é relacionado ao aspecto “fantasmagórico” que evoca a memória do personagem presente nela), o primeiro texto do material extra está muito perto da margem e o formato (16 x 24 cm) não casa com a diagramação, dando mais espaço acima e abaixo nas páginas (o original era menos “alongado”, 25 x 32 cm).

Houve também alguma desatenção na revisão, como a falta do acento circunflexo na sentença “O quê?”, na página 17, e a redundância no “…há 70 anos atrás!!!”, na 69.

Independentemente disso, a edição nacional não descarrila em algo mais grave e integra uma soma muito bem-vinda do material europeu geralmente ignorado no Brasil, assim como essa passagem da História da formação dos Estados Unidos.

Apesar de fechar um ciclo, fica a curiosidade de saber mais sobre o destino dos personagens e o desenrolar da narrativa de Philippe Charlot e Xavier Fourquemin.

Em tempo: para quem quiser saber mais sobre o tema, existe um livro de mesmo nome que saiu por aqui pela Editora Planeta, escrito por Christina Baker Kline e que já vendeu mais de um milhão de exemplares. É um romance com base em pesquisas e entrevistas da autora feitas com homens e mulheres que foram passageiros do obscuro trem.

Título: O trem dos órfãos
Autor: Philippe Charlot, Xavier Fourquemin e Scarlett Smulkowski
Páginas: 104 • Formato: 16 x 24cm •
Acabamento: capa cartonada •
R$  42,00
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(Resenha publicada originalmente no site Universo HQ )

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