Mana Neyestani se tornou vítima do
sistema totalitário instaurado pelo regime do Irã em 2006, no dia em que
desenhou uma conversa entre um personagem e uma barata no suplemento
infantil de um jornal iraniano. Nesse papo, o inseto utilizou uma
palavra azeri.
Os azeris, povo de origem turca do norte
do Irã há muito oprimido pelo regime central, se sentiram provocados
com o desenho, que para muitos foi o estopim para desencadear um
levante.
O regime de Teerã precisa de um bode
expiatório: Mana Neyestani. Ele e o editor da revista são detidos e
mandados para a prisão 209, uma seção não oficial da penitenciária de
Evin, sob a administração da Vevak, o ministério das Informações e da
segurança nacional.
Para concluir uma das suas mais conhecidas obras, A Metamorfose,
Franz Kafka (1883-1924) teve menos de um mês. Paralelo à história do
caixeiro viajante que um dia acorda transformado num inseto, o iraniano
Mana Neyestani teve bem mais tempo para vivenciar seu recorte biográfico
apresentado neste álbum: três meses preso.
Se Franz Kafka discorre sobre o estado emocional do homem, analisando o comportamento do protagonista e sua família, Uma metamorfose iraniana
também coloca a vida do autor nesse prisma, adicionando a crítica do
autoritarismo burocrático tão presente nas ideias de Kafka.
O problema maior é que Mana estava bem
longe de uma crítica sócio-política como todo bom quadrinhista de
jornais reformistas, que tiveram ascensão principalmente no final dos
anos 1990. Particularmente numa noite de poucas ideias, a figura
inocente de uma barata ganhou forma na sua tinta, junto com um termo
azeri que até ele mesmo usava no dia a dia.
O que parecia um trabalho nada arriscado
para um público jovem perante as críticas políticas por meio das
ilustrações e charges, tornou-se um verdadeiro pesadelo para Neyestani.
Após as Guerras Russo-Persas, esse grupo
étnico de origem turca da Ásia Central foi dividido em dois
territórios, cuja maior parte se encontra dentro do Irã, mais
especificamente na região ao norte, chamada de Azerbaijão Iraniano
.
Os azeris são um povo cuja religião
majoritária é o islamismo xiita, a mesma do Irã. Seu idioma também é
muito próximo dos turcomanos.
Diante de tanta complexidade e no
caldeirão de conflitos religiosos e políticos que é o Oriente Médio, o
“mal-entendido” gráfico foi usado como uma alfinetada panfletária que
causou discórdia e tumulto no Azerbaijão; e “o pato” – ou seria o
inseto? – foi pago pelo ilustrador e seu editor.
Como uma sobrevivente à altura de
inseticidas e hecatombes nucleares, a barata vai acompanhá-los durante
todo o longo episódio, como um lembrete incômodo do autoritarismo kafkiano do regime vigente.
Em capítulos curtos, Mana Neyestani usa
várias chineladas criativas, deixando a narrativa angustiante, mas, ao
mesmo tempo, paradoxalmente mostra seu tom irônico e bem-humorado.
Os exemplos podem ser vistos nas
temerosas reflexões que o autor faz de seu destino com o passar do
tempo, como também no uso bastante oportuno de várias referências
metalinguísticas.
Na obra, Neyestani coloca um nariz de
Pinóquio no diretor do jornal que promete apoio, dá corda no advogado
que canta de cor artigos do código penal, imagina a cela como uma ilha
isolada ou simplesmente ganha asas e quebra a moldura da diagramação
(sendo repreendido pelo chefe da segurança pela metáfora).
Na época, até um jogo de futebol entre o
Irã e México, na Copa do Mundo de 2006, vira motivo de esperanças de
acalmar as tensões no Azerbaijão.
Com um traço cheio de hachuras, que lembra o melhor do underground
de Robert Crumb, o quadrinhista vai construindo não só as suas
memórias, mas também as suas impressões além dos registros fieis, como a
ida de olhos vendados à sala de interrogatório.
A tensão cresce quando ele e o editor
são transferidos para o prédio principal, convivendo com outros detentos
com identidade e delitos falsos. Novas situações e personagens são
apresentados, impulsionando a trama para o paciente plano de fuga junto
com a esposa, quando Neyestani é colocado em liberdade provisória.
Perseguições políticas, arbitrariedades
praticadas em nome da lei e a questão sempre polêmica acerca da
liberdade de expressão automaticamente remetem a episódios como o
ocorrido em janeiro deste ano, no ataque contra a redação da revista Charlie Hebdo, na França (país onde Mana Neyestani atualmente reside), que deixou 12 mortes e vários feridos.
A publicação da Nemo segue o padrão editorial de outros títulos da editora, como O mundo de Aisha e O muro: volume em brochura com formato 17 x 24 cm, capa cartonada com orelhas, papel offset de boa gramatura e impressão.
Há algumas poucas “escorregadas”, como
todas as numerações dos capítulos serem por extenso, menos o primeiro
(indicado por algarismo arábico, “1”), a omissão das palavras “de uma”
no recordatório da página dupla (20-21) – “…por causa de uma simples
palavra…” –, e o hífen em “procurador-geral” no primeiro quadro da
página 26.
Título: Uma metamorfose iraniana
Autor: Mana Neyestani
Páginas: 208 • Formato: 17 x 24cm •
Acabamento: capa catonada •
R$ 39,90
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(Resenha publicada originalmente no site Universo HQ )
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