quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

A luta feminina em Bordados de Marjane Satrapi, por Vitória Lima


Desde que me entendo por gente que leio quadrinhos. Primeiro foram as revistinhas infantis, como Pato Donald, Mickey, Pinduca, Bolinha, Luluzinha e tudo o mais que havia disponível para o público infantil, dentre vários outros que meu pai nos trazia de suas viagens e os que acompanhávamos através dos jornais como o Correio da Manhã, que meu pai assinava. Havia também as adaptações para HQ dos clássicos da literatura, que começavam a se popularizar.

Hoje, os quadrinhos são mais uma forma, um suporte de leitura, de divertimento e ilustração para adultos, jovens adultos e crianças, através de uma gama de livros e adaptações que foram surgindo. O mais recente que me caiu sob os olhos foi “Bordados” (Companhia das Letras, 2010), de Marjane Satrapi, autora iraniana que já conhecia através da obra “Persépolis”, tanto em HQ como em filme, mas esse “Bordados” foi uma surpresa que me encantou sobremaneira. Através dele nos familiarizamos melhor com a organização familiar que permeia a sociedade iraniana, que privilegia o homem e submete a mulher a uma rotina limitante, que a reduz a um ser quase infantilizado e irracional. Isso tudo está em “Bordados”, onde as mulheres só tem um objetivo na vida: casar com um homem rico (que acaba sendo, invariavelmente muito mais velho que elas) e, nessa busca cega, muitas vezes se deparam com pretendentes que dizem ser o que na realidade não são. Na condição de oprimidas, encontram mil maneiras de ludibriar o opressor, sejam eles pais, maridos ou outros que assumam esse papel em suas vidas. E os pais das moças, sempre apoiando (de perto ou de longe) as opções das filhas, contanto que elas sejam economicamente proveitosas. Marjane aproveita a oportunidade para denunciar as armadilhas que se escondem por trás das falsas aparências. Paralelamente, criam-se as rodas de amigas, onde a sororidade as compensa pela opressão paterna (e até materna!) prevalente. 

Como todos ao oprimidos, as mulheres se apoiam e se ajudam mutuamente e inventarem formas de se defender das diversas armadilhas machistas que as cercam e ludibriar seus opressores, uma delas sendo a técnica do “bordado” que consiste na reconstituição do hímen, com a qual driblam a exigência obrigatória da virgindade para as mulheres. 

O livro me levou diretamente de volta aos anos 1970, quando estudava nos Estados Unidos. Estudar em outro país, era uma forma que as jovens iranianas encontravam de fugir da vigilância familiar, e quem sabe, casar e viver uma vida mais livre, longe dos costumes arcaicos do país de origem. Isso, para nós latinas era um sonho e para as orientais, no caso, as iranianas, uma oportunidade de fugir dos casamentos arranjados pelos pais, à revelia da noiva.

Crédito foto: Joseph Szabo

Conheci e fiz amizade com uma jovem iraniana nessa situação. Ela, que já estava morando nos Estados Unidos há alguns anos, já concluíra a graduação e estava vislumbrando um mestrado na sua área (não me lembro mais qual era a sua área de estudo). O fato era que ela sempre descobria um novo curso, uma nova forma de postergar o retorno para o Irã e lá submeter-se a uma união com um homem mais velho, escolhido pelos pais, que já se impacientavam com suas postergações e pedidos de desculpa ao “noivo” que haviam escolhido para ela, dentro dos padrões tradicionais: muito mais velho e rico, muito rico. Então tomaram uma decisão e foram eles mesmos resgatar a filha, que adiava tanto a volta para casa. 

Quando a conhecemos, a jovem iraniana estava vivendo esse dilema: voltar para o Irã e casar com o velho rico que os seus pais haviam escolhido para ela, ou permanecer nos Estados Unidos, opção com a qual ela não podia arcar e seus pais lhe deram um xeque-mate: ou ela voltava com eles, ou não arcariam mais com os custos de sua permanência nos Estados Unidos. E foi o que ela fez: voltou para casa, desolada e triste, e nós, suas amigas, não tivemos mais notícias suas.




4 comentários:

  1. Grata pela publicação do meu texto, no qual relato o drama das mulheres iranianos nos anos de 1970. E hoje não deve ter mudado muita coisa. Temos ouvido ecos de tragédias que tem vitimado mulheres iranianos.

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  2. Vitória, suas experiências são um brinde a sabedoria. Só tenho a lhe agradecer a fazer parte da família Comic House.

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  3. O texto nos remete não apenas as delícias das histórias em quadrinhos. Constata tbm a realidade opressiva das mulheres,independente dos lugares que habitam. Parabéns Vitória!

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  4. Eu que me orgulho de passar a fazer parte desta jovem comunidade.

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