quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Spawn, O soldado do inferno volta a ser publicado no Brasil, por Lucas Freitas


 Na Trilha da Cria do Inferno


Durante muito tempo, fiquei na dúvida sobre como deveria começar esta coluna - um problema que, odeio admitir, é um tanto quanto recorrente no meu processo de criação. Não só pelo começo do texto em si, mas também pelo próprio tema. Afinal, por mais que seja um prazer falar sobre quadrinhos, cinema e livros, em algum momento, temos que escolher um tema em particular para elaborar o texto, e é nessa ocasião que enfrentamos o famoso Paradoxo da Escolha.

Mas não é sobre isso que irei falar hoje.


Enquanto pensava e repensava sobre o que poderia ser meu tema, vi a notícia, ainda no dia 31/01, de que a Panini Comics iria relançar o Spawn no Brasil, e foi assim que, quando menos esperava, consegui meu tema.


Para quem não conhece o personagem, Spawn é a criação do artista Todd McFarlane, e é o alterego do tenente-coronel Al Simmons que, após ser traído pelo seu chefe, é morto e enviado para o Inferno, onde vende sua alma por uma chance de reencontrar sua esposa, Wanda. Mas como em todo pacto fáustico, existe um porém: apesar de ser trazido de volta à vida, Simmons volta cinco anos após a sua morte, em um corpo completamente carbonizado, e descobre que sua esposa não só está casada com seu melhor amigo, mas que também tem uma filha com ele. Como se isso não fosse o suficiente, como Spawn, Simmons é agora um Soldado do Inferno, tendo que desempenhar um papel importante na batalha final entre as forças do Paraíso e do Inferno, ainda que a perspectiva de cumprir sua parte da barganha após ser enganado não lhe agrade muito.


O que se segue é uma série de confrontos entre demônios, anjos, mafiosos, agências do governo, gorilas cibernéticos e o que quer que Todd McFarlane estivesse querendo escrever na época e que pudesse ser traduzido de forma visualmente excitante para o público adolescente facilmente impressionável no boom da image Comics dos anos 90.

Apesar de não ter pego esse boom inicial, eu também já fui um adolescente facilmente impressionável em algum ponto, e, assim como tantos outros antes e depois de mim, me vi capturado pelo mundo sombrio e miserável da Cria do Inferno.


Curiosamente, assim como no caso do próprio Al Simmons, esse foi um encontro de cartas marcadas desde o início.


Desde pequeno, sempre fui fascinado por esse universo do horror que hoje é meu ramo de escrita. Dos desenhos animados como Coragem, o Cão Covarde a filmes como O Estranho Mundo de Jack, o terror e o estranho sempre estiveram lá, por mais irônico que possa parecer para alguém que não é, nem de longe, um paradigma de coragem e bravura. Ainda assim, como resistir ao seu chamado? Quanto mais aterrorizante a criatura, quanto mais terrível o filme, maior a curiosidade que ele provocava. E foi assim que o que começou com um interesse de infância foi crescendo e ganhando forma também em outras mídias, como nos contos de Poe e Lovecraft, e nos filmes com suas infinitas Sexta-Feiras 13 e Mortes do Demônio.

Nos quadrinhos, esse fascínio me levou a conhecer personagens como o Motoqueiro Fantasma - outro caso clássico de pacto fáustico - e o Monstro do Pântano, por exemplo, assim como o próprio Cruzado de Capa e sua Gotham cheia de sombras opressivas e gárgulas onipresentes, esta já uma velha conhecida desde os filmes de Tim Burton.


Ainda assim, por maiores que fossem os mestres que passaram por cada um desses títulos, nenhum teria como ter me preparado para o que estava para encontrar em Spawn.


Com uma arte suja e violência visceral, McFarlane apresentou um mundo marcado pela corrupção, seja dos ambientes físicos, como nos becos imundos onde Spawn faz sua morada, seja moral, através das instituições e líderes mais interessados em seu próprio bem-estar e prazer, indiferentes ao sofrimento que causam aos demais, contanto que seus desejos possam ser realizados. E é nesse contexto que surge a Cria do Inferno, ele próprio uma personificação dessa corrupção, preso numa rede de intrigas e violência praticamente infinitas. Mas, longe de ser um redentor de seu mundo, Simmons segue a mesma lógica, mais preocupado em realizar seus próprios objetivos do que em proteger ou salvar as vidas que se encontram em perigo.


E se o mundo mortal não oferece qualquer tipo de paz ou perspectiva de redenção, o mesmo vale para o pós-vida, onde ambos os lados, sejam o Paraíso ou o Inferno, se equivalem em sua moralidade distorcida, preocupados demais em vencer seus oponentes para se importar com as consequências de suas ações.

Mas, por mais importante que tenha sido a participação de McFarlane na criação desse mundo, será apenas com a chegada do grande Greg Capullo, com seu traço pesado e estilizado, que esse universo sombrio, sujo e miserável alcançará sua forma definitiva, sendo dele a concretização de toda a estilística que representa o Spawn e seu universo.


Se falo muito na arte e na ambientação da série, é porque, infelizmente, esta é de longe um de seus pontos altos. Por mais que adore o personagem, é inegável que, na grande maioria das vezes, ele foi vítima do efeito Image - onde a arte incrível prevalecia sobre a substância das histórias, o que provocou coisas, digamos, desastrosas.


Não que ele só tenha histórias ruins, algumas das histórias do próprio McFarlane, em particular as 5 edições iniciais, apresentam bem o personagem e seu mundo, posicionando-o de modo claro em relação aos demais heróis do mercado. O começo de sua primeira jornada pelo Inferno também é digna de nota, assim como a passagem de Brian Holguin que passará a auxiliar o Todd na elaboração dos roteiros a partir da edição 71. Ainda assim, Spawn talvez seja um dos personagens com uns dos piores históricos em termos de história que me vêm em mente quando penso nisso.


Ainda assim, por mais canhestras que essas histórias pudessem ser, a arte que construiu Spawn, com seus becos imundos, capas longas e esvoaçantes, sombras onipresentes e abominações de todos os tipos foram - e ainda são - um parto cheio para esse hoje já não tão jovem admirador do terror, de modo que não é sem uma certa alegria que comemoro a volta do Soldado do Inferno ao meio editorial brasileiro.

E enquanto esse retorno não se concretiza, permanecemos aqui, seguindo a trilha de corpos deixada pela Cria do Inferno…


Até a próxima!





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