sexta-feira, 4 de julho de 2025

Um Último elogio a Luccheti, por Lucas Freitas



E eis que voltamos ao texto que, até hoje, nunca consegui terminar.


Sendo bem sincero, acredito que todo texto é difícil. Ainda assim, alguns com certeza são mais difíceis do que outros. Alguns pela importância do tema tratado, outros, pelo peso que representam. Tanto é que há mais de 1 ano venho pensando em como deveria escrever esta despedida ao grande Rubens Francisco Lucchetti, mais conhecido como R.F.Lucchetti, que veio a falecer em 04 de abril de 2024, aos 94 anos de idade, e ainda em atividade.


Passados um ano desde a despedida final ao grande mestre, ainda não encontrei uma forma que me pareça adequada para falar sobre a trajetória de Lucchetti. Por mais que escreva e reescreva este textos, não pareço encontrar palavras para definir uma trajetória tão longa e complexa - e vital para a muito do terror que temos aqui no Brasil.


Ainda assim, tentarei fazer o meu melhor.

 

Nascido em 29 de janeiro de 1930, a trajetória de Rubens Francisco Lucchetti nas letras tem início ainda em 1942, mais especificamente, em 31 de outubro, quando publica seu primeiro conto “A Única Testemunha”, no jornal O Lapiano, uma publicação do bairro da Lapa, em São Paulo. Autodidata, Lucchetti fez a escola apenas até o quarto ano, aprendendo tudo o que sabia por meio da leitura ou da própria prática.


Tendo que trabalhar desde cedo para ajudar no orçamento familiar, a vida de Lucchetti sempre foi marcada por esse binômio de trabalho e escrita. Até o ponto em que conseguiu transformar a escrita em sua profissão. Além das publicações em jornais, trabalhou também em rádio, televisão, quadrinhos e cinema, além de, claro, publicando contos e romances.


Ao longo de sua trajetória, teve uma participação gigantesca na vida cultural de Ribeirão Preto, tanto que chegou a ser eleito para a Academia Rio Pretana de Letras, apesar de nunca ter recusado o convite por motivos de sua timidez. De fato, além de sua conexão com o cinema, organizando mostras de cinema entre 1960 e 1965, foi também ali que iniciou seu trabalho no rádio, entre os anos de 1956 e 1965, quando escreveu seriados para a PRA-7 Rádio Clube de Ribeirão Preto.



Será também em Ribeirão Preto que Lucchetti realizará seus primeiros trabalhos na televisão, criando, na estação da TV Tupi da cidade, o seriado "Quem Foi?”. Estreando em 21 de abril de 1961, o programa de investigação e mistério permitia que o público ligasse diretamente para o estúdio e tentasse adivinhar a identidade do culpado do crime - sendo este um dos primeiros, se não o primeiro, programa do tipo a ser produzido no Brasil.



A essa experiência na TV, se seguirá o seriado Além, Muito Além do Além (TV Bandeirantes) e O Estranho Mundo do Zé do Caixão (TV Tupi). Ambos criados pelo icônico José Mojica Marins (1936 - 2020), traziam histórias de terror narradas por seu alter ego, o Zé do Caixão.




A associação de Lucchetti com o cineasta brasileiro, iniciada em 1966,foi extremamente prolífica. Segundo o mesmo, em entrevista a Rafael Spaca no livro Conversações com R.F.Lucchetti (de onde boa parte das informações desse texto foram tiradas), os roteiros por ele elaborados para o personagem contavam com: 15 roteiros de longas, 58 episódios de programas de TV, 7 gibis, 2 rádios novelas, 1 minissérie e 1 projeto de novela. Além deles, existiriam ainda, de acordo com o próprio Lucchetti,  16 roteiros inéditos por ele elaborados - além de um curioso projeto de desenho animado que contaria com o Zé do Caixão criança.


Apesar de render frutos tenebrosos, a colaboração entre os dois se encerrou em agosto de 1969. Entre os vários motivos, estariam desde alterações aos roteiros de Lucchetti, realizados por Mojica sem sua autorização, passando pela falta de foco e organização do diretor. Desnecessário dizer que também houve um trabalho por parte do próprio cineasta de invisibilizar o trabalho do roteirista, uma vez que o mencionava poucas vezes em entrevistas, chegando até mesmo a “atrapalhar” que outros viessem até Lucchetti, quase como se tivesse medo de perdê-lo.



Apesar da experiência, voltaria a trabalhar no cinema na década de 1980, tendo trabalhado majoritariamente com o diretor Ivan Cardoso, tendo escrito os roteiros para os filmes O Segredo da Múmia (1982), vencedor do prêmio Kikito de Melhor Roteiro no Festival de Gramado de 1982, As Sete Vampiras (1986), O Escorpião Escarlate (1989) e Um Lobisomem na Amazônia (2005) - sendo esta sua última participação no cinema. Além de Ivan, trabalhou também com nomes como Wilson Rodrigues e Jean Garrett. Ainda assim, de todas as mídias em que atuou, foi o cinema que mais lhe causou desgosto, devido às constantes alterações que eram realizadas sobre o seu trabalho.



Mas, dentre todos os trabalhos de Lucchetti, talvez tenha sido sua produção como autor que mais tenha se destacado. Começando a escrever sob encomenda ainda na década de 1960, teve seu primeiro livro de bolso, O Ouro dos Mortos, publicado já em 1963. De lá até 2004, detinha a impressionante cifra de mais de 1.547 títulos publicados. Alguns deles, como O Fantasma de Tio William, marcaram gerações de leitores que efetivamente conheceram o nome do autor. Ainda assim, é difícil de se estimar quantas pessoas podem ter sido impactadas pelo autor que utilizou uma série de pseudônimos oa longo da carreira. De fato, se o ator Lon Chaney ficou conhecido como “O homem das mil faces”, Lucchetti facilmente poderia receber o título de”O homem dos mil nomes”, tendo escrito sob uma lista de nomes como: Terence Gray, Mary Shelby, Theodore Field, Peter L. Brady, R. Baba, Christine Gray, Isadora Highsmith, Helen Barton, Frank Luke, Brian Stoker, Vincent Lugosi, Erich Von Zagreb, Frank King e Vera Waleska.


Importante salientar que boa parte desses nomes veio mais por demanda editorial, fosse para “criar” autores que pudessem escrever diferentes gêneros, fosse para dar um ar de produto importado aos seus produtos.


Igualmente vasta foi a produção de quadrinhos de Lucchetti, que trabalhou com nomes de peso do quadrinho nacional, como Jayme Cortez, Nico Rosso, Júlio Shimamoto, Eugenio Colonnese, produzindo em revistas clássicas como A Cripta, e várias outras revistas. Algumas dessas histórias curtas podem ser encontrados na antologia No Reino do Terror de R.F.Lucchetti, publicada em 2001 pela Opera Graphica e organizada por seu filho, Marco Aurélio Lucchetti, que talvez tenha sido seu maior colaborador e parceiro. 


Ainda como roteirista,  assumiu a produção de algumas histórias de terror da Bloch. Na época, com o encerramento de uma série de títulos estrangeiros, mas com uma forte demanda no mercado interno, Lucchetti passou a assumir os roteiros de A Múmia Viva e Frankenstein, títulos originalmente da Marvel Comics, mas que passaram a ser produzidos no Brasil. 


Também como quadrinista, publicou duas biografias, a primeira, intitulada A Vida de Silvio Santos, lançada em 1969. A segunda, uma biografia do mestre do terror norte-americano Edgar Allan Poe intitulada A Vida e os Amores de Edgar Allan Poe. Esse volume, lançado em 2018 pelo Sebo Clepsidra, marca uma de suas últimas produções em quadrinhos.


Sim, por mais que tenha tido seu auge nas décadas de 1960-1980, Lucchetti foi um autor que se manteve trabalhando ininterruptamente até seus últimos anos de vida.  Na verdade, os anos 2000-2010 trouxeram uma espécie de redescoberta para o autor, graças ao advento das redes sociais. Encontrando um novo canal de contato, e com o apoio do filho, o autor conseguiu criar um novo canal de contato com seu público. Para isso, muito colaborou projetos como o Editorial Corvo, que lançou a Coleção R.F.Lucchetti, publicando - e republicando - os trabalhos do autor. Da mesma forma, a internet deu a Lucchetti um ponto de contato não só com novos fãs, mas também como todo um mundo de jornais e meios de comunicação, como sua emblemática entrevista ao The New York Times.



No entanto, como tantas vezes na vida do autor, até mesmo essa redescoberta não veio sem suas dores. Dentre eles, sem dúvida o caso em que seu perfil de Facebook foi apagado, em outubro de 2014 que chegou a inclusive abalar a saúde do autor, em uma quase novo lançamento ao esquecimento.


E, infelizmente, essa parece ter sido uma constante na carreira de Lucchetti.


Tivesse ele nascido em qualquer outro país, certamente seria lembrado e cultuado como uma verdadeira potência de escrita. Ainda assim, tais foram as condições que o grande mestre do pulp passou por uma série de altos e baixos, chegando mesmo ao ponto de ter dito, em entrevista ao mesmo Rafael Spaca que não sentia o peso do esquecimento devido ao fato de jamais ter sido lembrado. Apesar do auge produtivo e de sua participação em uma série de setores, amargou quase 20 anos de um ostracismo cultural que só viria a terminar nos anos 2000, ainda assim, apenas para sofrer um novo golpe em 2014.


Assim, por mais que tenha tido seu reconhecimento, não foi uma vida fácil essa vivida por Lucchetti. Apesar do grande corpo de seu trabalho, viveu sempre como um desconhecido, mas sempre trabalhando em seus livros, como um verdadeiro apaixonado que era pelo terror e pela ficção policial.


Um dia, pretendo falar sobre o papel que Lucchetti teve em minha carreira, mas isso ficará para um outro texto, em uma outra ocasião. Por ora, fica aqui apenas essa pequena homenagem ao grande Papa do Pulp, que, por mais que tenha sido esquecido, jamais deixará de ser lembrado por aqueles tocados por suas obras.


E o resto, infelizmente, é silêncio.