terça-feira, 5 de abril de 2016

Jockey, de Rafael Calça e André Aguiar



Por Audaci Jr
Durante a Era de Ouro das corridas de cavalo, os porões do Jockey Clube continham muitos mistérios. Golpes, subornos, intrigas, morte, sorte e azar.

O segredo dos delírios de um homem está por trás daqueles portões, como também a chance de redenção de um jovem negro que sempre se considerou um azarão, a provação do amor de um casal que nunca pôde decidir o seu destino e alguém extremamente perigoso por sua obsessão pela sorte.

O acaso está lançado quando a vingança vem a galope. O cenário é o Jockey Clube de uma metrópole dos anos 1940 que remete à capital paulista, oferecendo todo o clima pulp extraído em profusões da veia do noir, tendo como base as corridas de cavalo.

O que mais chama a atenção em Jockey é a forma como Rafael Calça e André Aguiar estruturam a história, com uma economia de balões e recordatórios que abre espaço para um intricado jogo envolvendo propina, máfia e um inusitado toque fantástico em meio aos diálogos bem escritos e cheios de personalidade.

Em muitas sequências, o álbum enquadra na sua funcional e equilibrada diagramação uma narrativa altamente cinematográfica, a exemplo de uma perseguição automobilística, a fuga ligada ao sobrenatural e o embate físico de antagonistas galopando dentro do hipódromo.

Na obra, homens da lei corruptos, um jornalista sem ética prestes a perder a cabeça, um libidinoso político com duas-caras, o honesto jóquei negro que sofre preconceito, o detetive azarado que vira herói, um louco homicida que bate papo com o espírito de um cavalo, amores proibidos e uma seita de gângsteres com direito a cabeça decepada de cavalo, uma referência (de certa forma) ao clássico O Poderoso Chefão (1972), filme de Francis Ford Coppola baseado no romance de Mario Puzo (1920-1999).

Nesse desfile de personagens, os autores vão cravejando várias dúvidas e mistérios nas histórias paralelas que serão amarradas à medida que a HQ se aproxima do fim.

Antes de as tramas se cruzarem, uma série de eventos cai sobre os personagens, sejam as ações orquestradas pelo mero acaso do destino, ou movidas pelo planejamento violento da vingança guardada há um tempo equivalente ao azar de um espelho quebrado ou ainda por uma conspiração arquitetada pelo estranho e ganancioso culto.

É citada por essa seita a divindade bélica da mitologia lusitana chamada Cariocecus, o equivalente a Marte e Ares para as crenças romana e grega, respectivamente. A doutrina chegava a sacrificar prisioneiros de guerra e cavalos.

Ainda no plano místico, algumas vezes é tocado no conceito da Roda da Fortuna, carta do tarô que é uma das mais expressivas da sorte, mudanças e oportunidades, o movimento perpétuo da vida e do destino. Ela representará a boa ou a má sorte, dependendo de decisões e atitudes, motes também da HQ.

Por ser climatizado com as penumbras do noir, Jockey possui um humor negro em uma ou outra situação. Já a figura da femme fatale se resume praticamente às curvas desnudas no traço de André Aguiar em poucos momentos. Inusitadamente, a personagem feminina que tem mais importância na trama não carrega essa característica, apesar da sua última aparição.

A arte cheia de hachuras casa bem com a narrativa de cores sombrias e pesadas. Os desenhos de Aguiar fazem lembrar a escola europeia, principalmente aos nomes franceses como Christophe Blain, autor de Isaac, o pirata (cujo primeiro volume foi lançado no Brasil em 2005 pela Conrad).

Com cenas abertas, há passagens que impressionam pelo requinte técnico. Dentre os destaques, o quadrinhista “esculpe” as feições de um dos protagonistas nas sombras usando apenas o efeito das hachuras.

Ambos paulistanos, André Aguiar é autor da independente Velhaco’s (2014), HQ que envolve skate punk num futuro distópico; e Rafael Calça participou de coletâneas como o Front # 17 (Via Lettera, 2006), além de ter lançado seu primeiro trabalho solo, Dueto (2013), uma love story entre um lobisomem e uma cantora paraplégica.

O projeto foi contemplado pelo Programa de Ação Cultural da Secretaria de Cultura de São Paulo – ProAC para criação de quadrinhos. A edição da Veneta tem formato 21 x 28 cm, capa dura e uma impressão irregular no papel offset.

Jockey faz a sua “dança da sorte” bem antes do joguete com seus personagens, já na epígrafe que faz uma homenagem ao famosíssimo tango Por una cabeza, música de Carlos Gardel (1890-1935) com letra de Alfredo Le Pera (1900-1935). Uma das últimas parcerias dos artistas latino-americanos, mortos no mesmo desastre de avião.

Do que trata o popular tango? O vício da corrida de cavalos e a atração por mulheres. Seja como for, a Roda da Fortuna gira…


Título: Jockey
Autor: Rafael Calça e André Aguiar
Páginas: 136 • Formato: 21 x 28cm •
Acabamento: capa dura •
R$  49,90
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(Resenha publicada originalmente no site Universo HQ )

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